A mulher e o canário
Adriana Igrejas
A mulher e o marido tinham um canário. A ave era bonita e tinha uma cor vistosa que parecia refletir novos matizes quando ao sol.
Todos os dias pela manhã, a mulher limpava a gaiola do pássaro, trocava-lhe a água e a comida. Em seguida, ia pendurá-la na varanda, ao sol, onde ele, então, cantava alegremente. O marido se comprazia muito em ouvi-lo. Era uma grande satisfação saber que em paga aos tratos que lhe eram dispensados, o canário lhes alegrava a vida.
A mulher, porém, mesmo ao ouvir aqueles encantos sonoros, às vezes sentia-se triste ou desgostosa. Não sabia exatamente o porquê, mas adivinhava que aquilo era bem humano: sentir-se mal, mesmo quando tudo parece bem. A sensação de perda ou de algo não alcançado lhe era constante. Por vezes, certa dor e sofrimento comedidos lhe eram agradáveis. Um copo quebrado, um dinheiro mal gasto, uma palavra rude de seu companheiro eram o bastante para levá-la a uma reflexão existencial, e por mais que quisesse mostrar-se sempre feliz, suas feições a traíam. Seu rosto murcho, o olhar vago, o ar suspiroso… seu silêncio…
“Que é que você tem?” perguntava-lhe então o homem. Como se tivesse que ter alguma coisa! Não se podia pensar um pouco na vida, amargurar-se um pouco e depois voltar a sorrir no dia seguinte? Era preciso sorrir sempre? Sim, era feliz! Cansava-se de jurá-lo a ele! Não lhe faltava nada! Mas, não podia sentir o que quisesse? Amar, odiar, sentir fome, angústia, tristeza, felicidade, sono, insônia, náuseas, medo, receio, loucura, solidão, tédio, vontades, luxúria, frigidez, ambição, calmaria… satisfação, insatisfação? Assim, sentia-se viva e mulher! Não queria ser uma máquina de sorrisos e sins. Queria dizer NÃO muitas vezes, e chorar tantas outras, chorar muito, sem ter de dar explicações e motivos! Era assim que sentia faiscar seu princípio vital! Era assim que o queria sempre, porque sem suas emoções não lhe restaria nada!
Mas o homem não entendia isso e pesava-lhe muito machucá-lo. Para ele, qualquer torcida de nariz figurava-se como uma ameaça iminente. O que esta mulher poderia querer mais? Tinha uma boa casa, filhos saudáveis, marido trabalhador, carro de passeio, uma empregada… ela tinha até sua carreira e seu emprego! Por isso não tolerava que ela estivesse a suspirar pelos cantos! Não era lógico nem justo! Ele se esforçava tanto por fazê-la feliz! Era cheia de vontades, isso sim! Uma menina mimada! Tão cheia de caprichos que tudo a aborrecia! Seu silêncio o irritava intimamente. Talvez… medo… É, tinha medo do silêncio. As coisas não ditas ficam suspensas na imaginação e o medo das ameaças imaginárias fragilizam o indivíduo. Ao menos quando ouvia o canário, ela deveria sentir-se feliz! Mas, a princesinha já tinha enjoado disso também!
Certo dia, o canário não cantou. O desgosto que o homem sentiu pode bem ser imaginado! Quando no dia seguinte, e no outro, e no outro… o pássaro não voltou a cantar, seu desgosto se transformou em desespero, o que o fez chamar o veterinário.
O doutor, por sua vez, após examinar a criaturinha, afirmou não haver nada de errado com ela, tratando-se, portanto, de vontade ou não do bicho de cantar. Foi então, que o desespero tornou-se cólera e o ser pensante pôs-se a esmurrar as grades que encerravam aquele pequeno ser irracional. Por que você não canta, seu miserável? Acaso não lhe dou comida todos os dias? Não lhe dou água? Onde você vive não é limpo? Não tem o teu banho de sol todos os dias? Que é que te falta? Por que não canta mais?
O canário esvoaçava freneticamente dentro de sua prisão, mediante as bordoadas recebidas pela gaiola. Pare! Pare com isso! acudiu a mulher. Vai acabar matando o pobrezinho! O marido parou, suspirou e foi para dentro de casa cabisbaixo.
Dois dias depois, o canário voltou a cantar. Mas, daí por diante, tornou-se um canário caprichoso. Vez ou outra, não se dignava a cantar por sua vontade própria. Nesses dias, o homem se fazia completamente infeliz e irritável. Para completar, a mulher, de ironia perguntava: O que você tem? Por que está assim? Você tem tudo para ser feliz!
Certa vez, a mulher quis levar seus filhos em um passeio, mas seu companheiro não achou ser uma boa ideia. Com isso, ela ficou um dia inteiro contrariada. Ao perceber, o homem ficou nervoso e explodiu em seus argumentos: Por que você não fala comigo? Acaso lhe falta alguma coisa? Que é que te falta?
A mulher não respondeu. Correu para o quarto e trancou-se para poder chorar. Queria apenas a liberdade para sentir! Sorrir quando tivesse vontade de sorrir! Cantar quando tivesse vontade de cantar! Estremeceu. Esse último pensamento vazou seu espírito como uma lança em chamas. Era isso! Cantar quando quisesse cantar! Exatamente como o canário! Buscou a resposta lá no fundo do seu coração e usou de toda a sua capacidade intelectual para chegar a um postulado: O canário era ela e ela era o canário!
Como que movida pela excitação da descoberta, dirigiu-se decidida e rapidamente para a gaiola do pássaro. Sem hesitar um só minuto, abriu-a e libertou o canário. Olhou para o céu e o viu seguir seu destino enquanto ela sorria tristemente. Quando o canário desapareceu de suas vistas, ela foi buscar as crianças, tomou-as pelas mãos, abriu o portão e saíram. Disse simplesmente: Vamos passear.
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Índice – Edição III
2. Poesia: “A hora livre”, de Marcio Rufino
3. Galeria: Flores da Baixada – fotografia
4. Reportagem: Prêmio Destaq Baixada 2018
5. Poesia: “À trois”, de Gabriela Rezende
6. Reportagem: Baixada em dados
7. Conto: A mulher e o canário, de Adriana Igrejas
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