Prognóstico
Lu Ain-Zaila
< ouve esse áudio, meu tio me enviou ☹ >
< E só para você saber, a pessoa no áudio se identifica ☺ >
E antes que diga algo, leia. Não é coisa da minha cabeça. Eu sinto, eu sei. É real…
Isso tem que sair! Isso tem que sair!!!!
Eu preciso… eu preciso tirar… eu preciso isso.
É. Tem um implante na minha cabeça. Eu sei…
Ele está aqui, ó, tá sim, mas não tô achando. Droga!!!
Se eu rasguei a minha têmpora? Sim, usei a faca da carne há duas horas nela!
O suficiente para abrir um rasgo. É, sim, eu fiz!
Mas… não tá aqui, não está aqui!!!!!
Droga! Droga! Cadê essa porcaria!
— Achei pessoal! Está aqui. Parece que foi uma tentativa de suicídio. Calma…
— Não, eu não tentei me matar, me solta! Me solta!!!
— Calma, a gente vai te ajudar. Um dia ruim não precisa terminar assim…
— Não! Tem um implante na minha cabeça. Tira ele! Tira ele!
— Opa, calma… agora você vai ficar bem… bem de verdade…
— Não! Não injeta… isso…nada… em mim…
— Ei… Onde eu estou?
— Você está bem aqui, não se preocupe.
— Aqui, onde? E então… vocês acharam o implante, não é? Cadê? Cadê ele?
— Desculpe, mas não há um implante…
— Quê? Vocês não tiraram?! Eu disse que tinha um, eu mostrei onde! Me solta!
— Deixe-me explicar. Nunca houve um implante
— Então… são ondas? Algum tipo de onda, não é?
— Não sabemos de ondas, não…
— Eu estou seguro aqui? Onde é aqui?
— Aqui é todo o lugar…
— Como assim? Mas de que droga você está falando?
— Estou respondendo à sua pergunta.
— Não, você não respondeu nada. Disse que não tem implante e que aqui é todo o lugar.
— Precisamente, respondi com a mais alta sinceridade.
— Isso… tem algo errado aqui, comigo. O mundo lá fora… ele está louco.
— Sim, concordo, o mundo está realmente louco.
— Vocês… fizeram isso, não foi? Colocaram implantes e ficamos loucos.
— Não existe implante algum na sua cabeça.
— Mas então você admite… existe nas dos outros?
— Não existe implante na cabeça de ninguém.
— Mas você não abriu a cabeça de ninguém para saber!
— Nós não abrimos, realmente, mas deveria cogitar uma outra possibilidade.
— Mas… por que você está sendo evasiva?
— Não estou sendo evasiva, apenas respondendo o que me pergunta.
— Então… o que… tem na minha cabeça e o que tinha na dos outros?
— Vocês mesmos, nada além de vocês mesmos.
— Você é louca! As pessoas estão se matando lá fora.
— Sim, mas estão fazendo isso umas às outras por vontade própria.
— Eu não machuquei ninguém por vontade própria!
— Machucou sim, talvez não por vontade totalmente própria, mas foi só você.
— Isso é mentira! Diz a verdade! Fala a verdade…
— Tudo bem… Tudo começou quando alguém compartilhou uma notícia falsa e passou a corroborar os fatos sem saber se eram verdadeiros ou não. Daí outros começaram a discutir sobre a notícia e a brigar pela sua veracidade ou falsidade. E então alguém gravou, repassou e ficou fora de controle.
— Como assim? Era uma notícia verdadeira. Meus amigos estavam apavorados e não são mentirosos.
— Não disse que eram mentirosos, apenas que eles deram mais verdade à mentira.
E você, mais verdade ainda, pois ao contrário do que pensa, notícias falsas são repassadas por pessoas verdadeiras que querem compartilhamentos, curtidas e comentários a todo custo.
— Isso não é verdade!
— É sim, o que popularmente chamavam de “Telefone sem fio”.
— Eu nunca ouvi falar desse experimento.
— Não é um experimento, mas uma brincadeira entre pessoas e depois um jargão, pois a diversão era perceber a deturpação da notícia de ouvido a ouvido, mas hoje temos mensagens, compartilhamentos e as pessoas não parecem ligar para a verdade. Aumentando o conto.
— Isso é loucura! Você fica aí olhando para a minha cara e me diz que tudo isso aconteceu por causa de um boato disseminado?
— Sim, precisamente, uma loucura social baseada em obter “status”, subir no ranking dos algorítmicos das redes sociais. Tudo para ser lembrado como a pessoa que “apresentou”, mesmo não sendo totalmente verdade ou sequer 30% dela ou que essa fama mal perdure por 24 horas, segundo nossos analistas.
— Não pode ser verdade, não é verdade…
— Na verdade não era, mas se tornou “uma”. E como? Simples, fatos alarmantes sempre rendem curiosidade e são iscas perfeitas de visualizações. E daí por diante a teia é simples!
— Não… não. Como assim?
— Você recebe um áudio qualquer e repassa, recebe uma foto de alguém sobre alguém que nem consegue identificar e repassa… Um “doutor” diz que suco de limão é cura para zika e repassa… E o pior de todos os meios de boatos possíveis, as mensagens reescritas, e estas são um ótimo exemplo: “Olha só o que está acontecendo…”, “um amigo meu me passou isso”, “ouve esse áudio, meu tio…”, tia, primo, um funcionário, “a pessoa no áudio se identifica”.
— Mas essas…
— Sim, precisamente, e agora que revê toda a linha de acontecimentos que ajudou a disseminar. Me dê um prognóstico do seu caso, baseado em fatos, dados reais, pois estas… são mensagens do seu celular distribuídas nas últimas 72 horas. E então? Qual o seu parecer agora sobre o implante na sua cabeça e todo o ocorrido?
— Era tudo mentira… e… meu implante se chama boato.
— Preferimos chamar cientificamente de Folie à divers social (Loucura à vários social), um infelizmente novo passo da humanidade ao retrocesso social em vida coletiva, quando deveriam ser mais informados e conscientes, mas se tornaram corajosos para mentir, enganar, acusar e se eximir. Desculpe, mas é inoperável. Não dá para retirar.
E antes que me abandone, você leu. Não é coisa da minha cabeça. Eu sinto, eu sei. É real.
Índice – Edição IV
2. Poesia: “A poesia é um flerte”, de Alan Salgueiro
3. Reportagem: Destaq Baixada 2019
4. Galeria: Bianca Cunha – ilustração
5. Poesia: “O canto do Rei Baltazar na Baixada Fluminense – ‘O Patrimonializar’”, de Macedo Griot
7. Galeria: Igor Freitas Lima – fotografia
8. Poesia: “polifemo”, de Lasana Lukata
9. Conto: “Prognóstico”, de Lu Ain-Zaila
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